Sumário e Apresentação

  • Patrícia Trunfo
Palavras-chave: Sumário, Apresentação

Resumo

 

O Patrimônio Histórico há muito vem sendo reconhecido, por países referências na proteção à cultura, como vetor identificador das raízes, valores e princípios formadores de determinada sociedade, verdadeiro pilar contra os riscos da massificação da cultura, impostos por grupos detentores do capital tecnológico e industrial, de forma a preservar a autonomia e independência axiológica de determinado povo e, por consequência sua autoestima como nação. O art. 27 da Convenção de Haia, em 1899, já incluía o Princípio da Imunidade dos Bens Culturais, dispondo que “Em cercos e bombardeios, todas as medidas devem ser tomadas para poupar, o tanto quanto possível, edifícios dedicados a religião, arte, ciência ou para fins de caridade, monumentos históricos, hospitais [...] desde que eles não estejam sendo usados no momento para fins militares. É dever de quem estiver sitiado indicar a presença de tais edifícios ou lugares com sinais distintivos ou visíveis, que serão notificados antecipadamente ao inimigo”, o que se aperfeiçoou com a Resolução 2347, do Conselho de Segurança da ONU, dispondo sobre a proteção do Patrimônio Histórico em conflitos armados e a criação de uma rede de locais seguros. Outrossim, desde outubro de 1931, em Conferência realizada em Athenas, os membros do Escritório Internacional dos Museus e da Sociedade das Nações, demonstraram preocupação com a preservação do Meio Ambiente Cultural, no tocante à preservação de Prédios e Monumentos Históricos. Na sequência, a ONU reconheceu como prioridade a tutela do Patrimônio Cultural, no que se inclui o Histórico, ao criar a UNESCO, em 16.11.1945. Dessa feita, normas internacionais vem proclamando a necessidade do amparo aos ícones tradutores da nossa identidade como membros de um determinado grupo social. 

O Brasil, por sua vez, embora ainda incipiente no amparo do nosso Patrimônio Histórico, o que se explica pela degradação educacional que vem ocorrendo nas últimas décadas, que faz com que o brasileiro cada vez menos absorva noções de pátria e nação, como se fôssemos visitas em nosso próprio país, não nos responsabilizando como cidadãos  responsáveis pela formação da nossa memória e do nosso patrimônio, fato que se agrava com a ideologia da vitimização que nos faz renegar e nos esconder de nosso papel de protagonistas da nossa memória, obteve alguns avanços, não só no plano legislativo como em ações pontuais oriundas do Poder Público e da Sociedade Civil. De fato, a nossa Constituição Federal, no art. 216, em rol não taxativo, estabelece os instrumentos de proteção do patrimônio cultural brasileiro, ao dispor que “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação” e, de forma paralela à tutela legislativa de preservação ou prevenção, determina, no art. 216, § 4º, a responsabilização dos causadores de danos e ameaças ao patrimônio cultural, chamando, de forma adequada à atenção do Poder Público e da Comunidade para a questão da tutela da cultura. De outra sorte, em 14.11.2017, o Brasil foi o país que recebeu o maior número de votos, entre os 12 Estados eleitos para integrar uma das vagas do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco, passando a ganhar notório destaque no órgão responsável por aplicar a Convenção da ONU para a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural.

Nesse desiderato, apesar do tabefe que levamos, ocasionado pelas omissões do Poder Público e da Sociedade Brasileira, com a tragédia do Incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro, podemos afirmar que algumas atitudes positivas vem sendo tomadas no sentido de arregaçarmos as mangas e assumirmos nosso dever de escudar o nosso Patrimônio Histórico, o que se reflete nessa obra, que traduz a união de esforços entre a Sociedade Civil e o Estado, concretizada no Seminário Nacional sobre Patrimônio Histórico, evento integrante da agenda anual da AVFV em Porto Alegre, cuja 3ª Edição, realizada nos dias 23 e 24 de agosto de 2018, mais uma vez foi um marco em nosso estado. A Associação Victorino Fabião Vieira - AVFV, com o apoio essencial da Escola Superior da Advocacia-Geral da União/RS, da Escola Superior de Direito Municipal/PoA, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/RS , da Assembleia Legislativa do Estado do RS e da FAMURS, bem como de uma empresa amiga e consciente, a Make Vídeo, que ofereceu a transmissão virtual do simpósio, manteve o seu caráter interdisciplinar, com a abordagem de temas pertinentes aos quatro eixos de atuação da entidade, Patrimônio Cultural, Legislação Patrimonial, Educação Patrimonial e Turismo Cultural, o que atraiu o interesse não só dos profissionais que, nas suas diversas áreas, trabalham com esses assuntos, mas da sociedade em geral.

Os nomes dos palestrantes e suas qualificações profissionais nas diversas áreas afins ilustraram o caráter agregador da AVFV, que busca a união de todos em prol do interesse comum de auxiliar o RS a evoluir e resgatar sua herança histórica. O brilhantismo dos Mestres que há alguns anos vem contribuindo para o sucesso do Seminário se projeta nessa edição especial, preparada com muito carinho pela Escola de Direito Municipal de PoA, dirigida pelas mãos incansáveis da Profª Dra. Cristiane Catarina Fagundes de Oliveira. Nessa obra, passamos pela análise sociológica da memória, muito bem enfatizada pela Profª Me. Hilda Simões Lopes, que entre outros, com muita luz, coloca nossa preocupação com o destino da nossa sociedade, que busca no passado a segurança hoje perdida“...agora, mais do que se liquefazer, a sociedade “reinventa”. Reinventa-se o trabalho, reinventa-se a família, reinventa-se o amor, reinventa-se o corpo e o rosto, reinventa-se a idade, reinventa-se o sexo, a vida profissional, reinventa-se a realidade em redes sociais, reinventa-se e inventa-se a felicidade para ser vista e exibida; o individualismo é substituído pelo “novo individualismo” no qual as identidades, o sexo e o visual são descartáveis. Reinventar o que se bem entende é fácil para os membros desta sociedade que estimula o narcisismo, cultua quem é famoso, idolatra as grandes fortunas; os egos ficam imensos e agressivos, a competição e a ambição se auto justificam em níveis estratosféricos, e, sem perceberem, as pessoas ficam hipnotizadas por mecanismos de fuga:... Indivíduos despedaçados não conseguem buscar o futuro, embotam a criatividade e a sensibilidade, e como se fossem árvores ameaçadas pelas ventanias, buscam as raízes, procuram a firmeza perdida, procuram o passado.” À socióloga se alia o Jurista, qualificado pelo notório conhecimento do Prof. Dr. Marcelo Schenk Duque, querido Professor de Direito Constitucional Gaúcho, que com maestria nos apresenta a Topografia Constitucional do Patrimônio Histórico, passando, entre outros enfoques, pelo exame do Patrimônio Histórico como direito da personalidade, nos ensinando que  “Em particular, a possibilidade de se desenvolver a personalidade a partir do acesso às fontes culturais traduz-se em ideal a ser buscado pelo próprio Estado de direito, onde a liberdade afirma-se como valor básico. Isso se deixa fundamentar pela própria compreensão do ser humano a partir das suas dimensões básicas, em particular, no tema ora investigado, na dimensão estética ou artística do ser... A conclusão que se pode tecer é que uma vida pautada pela dignidade passa por uma vida com acesso às fontes culturais, de modo que o dever do Estado de proteger o patrimônio histórico contribui para a própria preservação da dignidade humana.”

A antropologia também ganha fôlego com o exame responsável da Interpretação do Patrimônio e do Empoderamento Cultural, pela lição madura do Prof. Dr. Lucas Graeff ao afirmar, entre outros “É disto que se trata empoderamento cultural: um processo de transformação pessoal gerador de domínio sobre a experiência pessoal que, por sua vez, repercute nas experiências culturais. Esse processo é crítico porque ele produz rupturas. Não se trata de incorporar as experiências externas nem, tampouco, de exportar as experiências pessoais para a comunidade. Não estou falando aqui de proselitismo ou de promoção de uma cultura hegemônica, nem, tampouco, de culturalismo e defesa de culturas autocontidas. Trata-se, sim, de um enfrentamento da experiência de vida; uma experiência vivida em primeira pessoa, mas devedora de experiências coletivas. Falo, sim, de uma retomada das rédeas da própria existência por meio de bases culturais compartilhadas e que merecem uma atenção fina, seja para serem celebradas, destronadas, assumidas como próprias ou como alheias; seja, enfim, para protegê-las ou para destruí-las.” E a arquitetura foi marcada pela caneta da Profª Me. Simone Back Prochnow, com seu texto Heterocronia na Arquitetura; O Projeto como Viabilizador do Patrimônio e de seu Entorno, apresentado de forma espetacular no III Seminário Nacional sobre Patrimônio Histórico, no qual a Profª Simone inicia nos fazendo pensar sobre o quão “É facilmente perceptível o aumento da velocidade nas mudanças em nossas vidas e no mundo atual. Conceitos já considerados triviais como obsolescência programada, efemeridade, volatilidade e vida líquida fazem parte de um repertório preocupante se pensarmos em arquitetura e especialmente em patrimônio. A grande revolução da informação que vivenciamos está alterando a relação espaço/tempo, a maneira de nos relacionarmos uns com os outros e com nossas próprias decisões e memórias. Há uma proliferação de pontos de vista presentes a cada discussão, a cada conversa. Como solucionar tantos impasses em nossas cidades com relação às novas demandas? Como abrir espaço para a evolução sem perder a conexão com o que existiu, com nossos valores?” Nesse belo trabalho, verificamos a possibilidade, através da arquitetura, de combinarmos o passado com o presente, visto que, conforme leciona a Mestre em Arquitetura, “Uma nova mentalidade com relação à compatibilização de novas partes com as edificações históricas, assim como do edifício histórico a ser preservado e seu entorno, são fundamentais para o processo de permanência dos imóveis inventariados. Apenas o uso justifica ou dá condições de longevidade às edificações.”  

Outro arquiteto de escol nos fez percorrer o caminho da importância do Turismo Cultural. O Prof. Dr. Paulo Edi Rivero Martins, apresentando um projeto inovador e de sucesso, com seus Roteiros Arquitetônicos como Patrimônio Cultural, nos provoca perguntando “Qual é o nosso dever como cidadãos com relação ao patrimônio cultural de nossas cidades? Conhecer para valorizar, defender e preservar para poder divulgar, e expor para o amplo conhecimento, de seus habitantes e de pessoas de outros lugares, países e continentes. Obras arquitetônicas e espaços urbanos fazem parte fundamental desse patrimônio, são memória e testemunho de épocas, culturas, hábitos e estilos que precisam ser compreendidos e preservados.”

O intercâmbio com outras nações, por sua vez, vem pelo texto invejável do Jurista Argentino, Prof. Dr. Mario Cámpora, que nos brinda com o estudo sobre um caso emblemático envolvendo a preservação do Patrimônio Histórico Argentino, El Caso Riachuelo”, trabalhando o Direito à Preservação do Patrimônio Cultural em conexão com conceitos do Direito Ambiental. O notável professor de Direito Constitucional inicia indagando se “Existe un derecho sustantivo a un ambiente "de una calidad determinada" en el derecho internacional?” Outrossim, passa por uma análise aprofundada da jurisprudência da Corte Suprema de Justicia de la Nación, ressaltando que “Es importante destacar en primer lugar que la reciente jurisprudencia de la CSJN ha señalado que el constituyente reformador de 1994 estableció la prioridad de la protección preventiva, esto es que los daños deben ser prioritariamente impedidos, luego restaurado, y por último, si no hay otras opciones, deben ser reparados:…tiene una prioridad absoluta la prevención del daño futuro, ya que (…) en el presente se trata de actos continuados que seguirán produciendo contaminación. En segundo lugar, debe perseguirse la recomposición de la polución ambiental ya causada conforme a los mecanismos que la ley prevé, y finalmente, para el supuesto de daños irreversibles, se tratará el resarcimiento.” E passa pelo exame da problemática urbana e de conservação do Patrimônio na “Causa Riachuelo”:  “En este ámbito, en dónde debe conjugarse la identidad de los pueblos con la dinámica del mercado y del progreso, el desafío de respetar normas que limitan al mercado en pos de la conservación suele ser significativo.

Entonces, desde esta perspectiva, al preparar esta exposición, me pregunté cuál podía ser el aporte que desde la Argentina resultaría útil y provechoso para una publicación que dedica un número especial a la preservación de bienes culturales en temáticas diversas como las misiones jesuíticas, los bienes culturales muebles, la preservación documental, el arte sacro y las leyes de incentivo a la protección del acervo cultural.” As respostas a essas tão importantes questões estão redigidas com muita propriedade pelo nosso admirado professor de Direito Constitucional da Universidade de Buenos Aires.

E não poderia faltar uma homenagem à capital dos gaúchos, sede do Seminário Nacional sobre Patrimônio Histórico e que irá trazer o I Seminário Internacional sobre Patrimônio Histórico, em setembro/2019, com um estudo sobre as cerâmicas lusas de nossa cidade, apresentado com profundidade pela Profª Verônica Di Benedetti. Nesse texto, a nossa querida Arquiteta, Mestre em Geociências, faz um apanhado histórico do surgimento da cerâmica há 25.000 anos atrás, na República Tcheca e vem avançando no tempo, com uma bela análise histórica até chegar nos elementos existentes em Porto Alegre, apresentando exemplos relevantes com ao Casa dos Leões e o Solar dos Câmara. A leitura desse artigo nos faz mergulhar na história e nos propicia rico conhecimento.

Por fim, concluo essa apresentação, manifestando minha felicidade por ter recebido a honra de prefaciar essa obra, escrita por tão cultos e competentes professores que, com amor, dedicaram-se a desenvolver pensamento crítico e construtivo sobre valores tão essenciais para a sociedade humana, que são a cultura e o direito à memória. Que muitos outros unam-se a nós nessa causa; que a sociedade se aproprie do seu patrimônio e o conserve, de modo a transmitir às gerações futuras o que receberam como fruto do esforço, paixão e sabedoria de seus antepassados, fazendo com que a geração presente seja elo sólido entre o passado e o futuro, formando uma corrente que nos permita evoluir e crescer. Sigamos, como diz a letra de Marcus Viana, “...no passo de quem vai pra guerra, por Liberdade, honra e terra...”, para que ao fim, não sejamos “Um rei em farrapos sem pátria, Querência e bandeira.”

 Muito obrigada,

Patrícia Trunfo, Advogada da União, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professora da Escola Superior da Magistratura Federal Cursos de Pós-Graduação em Direito Processual da ESMAFE/UCS e UNIRITTER, Presidente da AVFV.

     

Publicado
2018-10-30
Seção
Artigos